domingo, 19 de fevereiro de 2012

'Credibilidade do Brasil ajudará diálogo com Irã', diz analista

SÃO PAULO - Em 2010, quando o acordo turco-brasileiro foi rejeitado pelos EUA e demais grandes potências, Anne-Marie Slaughter ocupava um posto-chave na diplomacia americana: no Departamento de Estado, era a diretora de planejamento político, espécie de centro de reflexão e debate dentro da Chancelaria americana. Hoje, a professora de Princeton - e uma das vozes mais influentes tanto em think-tanks quanto nos corredores do poder de Washington - quer o Brasil de volta à mesa de negociação com o Irã.
"O problema do acordo de 2010 não eram os mediadores, Brasil e Turquia, mas o 'timing' do anúncio", justifica. Para ela, a experiência histórica do Brasil, que optou por não militarizar seu programa atômico, facilita uma "saída honrosa" a Teerã. A seguir, trechos da conversa por telefone com o Estado.
ESTADO: A sra. defende a participação do Brasil e da Turquia no diálogo com o Irã como uma forma de superar o atual impasse. Hoje, com sanções unilaterais e ameaças de ataque, a situação está muito mais tensa do que à época do acordo turco-brasileiro, em 2010. Por que o Brasil deve correr o risco e se expor de novo?
 
ANNE-MARIE: De fato as coisas estão muito diferentes do que em 2010 e a relação entre o Brasil e o Irã mudou desde o governo Lula. Portanto, entendo que o Brasil veja mais motivos contra do que a favor da participação nas negociações. Ao mesmo tempo, crescem as razões para o envolvimento da Turquia, por sua própria condição geográfica - ela é vizinha do Irã.
ESTADO: O Brasil ampliaria a legitimidade do grupo negociador. É isso?
ANNE-MARIE: Sim. O Brasil teve uma experiência própria ao tentar desenvolver um programa nuclear (com fins militares) e, depois, decidindo que esse não era o melhor caminho. Isso dá ao País uma credibilidade especial e é preciso usá-la. Acho importante permitir ao Irã uma saída honrosa, na qual Teerã diria 'nós é que decidimos fazer um programa para fins pacíficos e de forma transparente'. Com o Brasil a bordo, reforça-se o argumento de que o Irã poderia ter escolhido ter a bomba, mas, por conta própria, não quis.
ESTADO: O governo brasileiro interpretou a recusa dos EUA em aceitar o pacto de 2010 como um sinal de que americanos aceitam que países emergentes tenham voz em temas como finanças globais, comércio ou meio ambiente, mas não quando o assunto é a 'alta política' - questões de guerra e paz, segurança internacional. A sra. concorda com essa visão?

ANNE-MARIE: Não concordo. Acho que os EUA responderam daquela forma por causa do 'timing' do acordo, não porque eram o Brasil e a Turquia os negociadores. Do ponto de vista americano, trabalhamos duro para conseguir apoio a uma nova rodada de sanções na ONU e o acordo parecia uma jogada do Irã para evitar essas punições - algo que Teerã já havia feito antes. Portanto, não acho que foi algo do tipo 'alta política versus baixa política', mas uma mensagem dizendo 'não caia na jogada iraniana'. Acredito que os EUA têm sido bem receptivos à emergência de um novo poder na região - aliás, cuja relação com o Irã pode ser útil.
 
ESTADO: A sra. disse recentemente que, diante da crise na Síria, espera-se que a Turquia 'se comporte como uma verdadeira potência, da mesma forma que, se houvesse uma crise, por exemplo, no Paraguai, todos olhariam para o Brasil'. Que 'papel de potência' é esse ao qual a sra. se refere?
ANNE-MARIE: A estrutura global depende de quanta responsabilidade países como Turquia e Brasil estão dispostos a arcar em âmbito regional. Uma ordem internacional que funciona depende de um grupo de países disposto a sustentá-la. E isso significa ter potências regionais dispostas a fazer coisas muitas vezes custosas, impopulares ou difíceis - seja, por exemplo, lutar contra a pirataria ou usar a força em ações humanitárias. Quero deixar claro que não sugeri que o Brasil invada ninguém (risos). Mas veja o caso do Haiti, onde o Brasil teve um papel importantíssimo. O papel de potências em sua região é parte de sua ação global. Os EUA não podem e não querem mais ser a polícia do mundo.
ESTADO: Um argumento semelhante, de que a ordem internacional depende de potências regionais fortes, criando-se um equilíbrio estável, foi usado nos anos 70 pelo secretário de Estado Henry Kissinger. Isso não é novo, certo?
ANNE-MARIE: Recomendo algo que parece similar, mas tem motivações muito diferentes. Kissinger queria uma balança de poder. Eu quero potências que apliquem a lei e a ordem internacional. No raciocínio da balança de poder, seria necessário que países como Brasil e Índia se tornassem mais poderosos em termos militares. Não é essa a minha visão, embora reconheça que o poder continua sendo muito importante. Defendo o compartilhamento de instituições e regras sobre, por exemplo, como Estados podem tratar seu próprio povo. Para isso, é preciso ter várias potências envolvidas. Defendo a expansão do Conselho de Segurança da ONU, pois potências só podem contribuir com uma ordem da qual realmente se sintam parte.
ESTADO: A sra. foi uma das primeiras a defender a ação na Líbia. Hoje vemos uma crescente discórdia sobre o que houve: para americanos e europeus, a queda de Muamar Kadafi foi um exemplo de intervenção legal e eficiente; para os Brics, foi uma operação de mudança de regime em violação à resolução da ONU, portanto 'um perigoso precedente' - termo usado até pelo Brasil -. Não se trata de um mero debate teórico, pois ele está determinando a reação diante da crise síria. Como a sra. vê isso?
ANNE-MARIE: Vejo essa última versão no discurso da China e da Rússia, mas não sei se ela se aplica a todos os Brics. A Índia votou a favor de uma resolução no Conselho de Segurança contra a Síria. Desde o início a Otan deixou claro o que seria necessário fazer para realizar essa operação humanitária. Kadafi estava colocando cidades como Misrata sob cerco. Desde o começo falamos que seria necessário atacar os centros de comando e controle do regime líbio e as tropas do regime porque eles estavam agindo contra cidades inteiras. Não foi uma operação de mudança de regime, mas um ataque a um governo que estava determinado a massacrar sua população. A Rússia diz que não sabia disso desde o início e a Otan afirma o oposto.
O Brasil se absteve na votação porque não apoiava a ideia de usar 'todos os meios disponíveis' contra Kadafi e a imagem do ditador sendo assassinado foi usada pelo governo brasileiro como um argumento de que a coisa havia fugido de seu propósito inicial.
A questão é que não havia outra forma de proteger os civis líbios e, no final, a morte de Kadafi foi comemorada em quase todo país. Foi totalmente errado matá-lo daquela forma, não há dúvidas sobre isso. Mas é preciso diferenciar as ações da Otan e da oposição líbia. No caso da Síria, não está se falando que uma intervenção é desnecessária, mas que ela seria muito difícil diante do poder de Assad. Não é possível entrar com uma nova força, externa, no conflito. Então, o que podemos fazer? É uma pergunta difícil, mas todos os poderes responsáveis devem fazê-la.
ESTADO: O que a sra. acha que pode ser feito diplomaticamente?
ANNE-MARIE: Seria importante passar no Conselho de Segurança a resolução mais dura que conseguirmos. A alternativa agora é entre armar o Exército Livre Sírio (de oposição), ou criar zonas de exclusão na fronteira com a Turquia onde sírios poderiam buscar refúgio. Se a Turquia, a Jordânia ou a Liga Árabe pedissem isso, acredito que teriam total legitimidade, diante do risco de uma onda de refugiados causados pela guerra civil.
ESTADO: Com base na experiência na Líbia e em outras crises humanitárias, o Brasil está tentando adicionar à ideia de 'responsabilidade de proteger' o conceito de 'responsabilidade ao proteger'. O que a sra. acha disso?
ANNE-MARIE: Sou a favor de elaborar a ideia de responsabilidade de proteger de modo que países se sintam mais a vontade com ela. Mas desde que isso não a ameace. Pode-se até dizer que a coisa foi longe demais na Líbia, mas é fato que muito menos civis morreram porque a comunidade internacional agiu. É preciso que Estados entendam que eles não têm carta branca para fazer o que quiserem com seu povo e haverá uma linha que, caso eles cruzem, a comunidade internacional terá direito de responder. Mas concordo com a presidente Dilma que o objetivo da intervenção é parar a matança. Em alguns casos, como o da Síria, uma intervenção causará ainda mais mortes. Nesse sentido, é fundamental usar a diplomacia de forma preventiva.
ESTADO: Obama receberá Dilma no dia 6 de abril. Qual seria o melhor resultado para o encontro?
ANNE-MARIE: O melhor seria alcançar uma parceria energética para as Américas, que precisam se tornar uma economia muito mais integrada - e isso é do interesse de todos nós. E o caminho para isso é a cooperação profunda na área de energia. EUA e Brasil podem e devem conduzir esse processo, com apoio dos demais.
ESTADO: E o pior resultado?
ANNE-MARIE: Seria ver o Brasil tentando definir sua identidade com base na contraposição aos EUA, em vez de trabalhando com Washington. Algumas vezes foi assim que o Brasil agiu e ganhou popularidade no mundo. Foi o caso em alguns momentos com Lula - embora ele tenha feito muitas coisas boas. Seria uma pena ver isso com Dilma. Mas duvido que isso ocorrerá.
Fonte: O Estadão

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