Luiz Augusto de Castro Neves
A visita da presidente Dilma Rousseff a Washington, em março, poderá sinalizar com maior clareza qual será o tom das relações entre o Brasil e os Estados Unidos para o futuro próximo. Os dois países, além de serem os mais populosos, constituem as duas maiores economias das Américas e não seria um absurdo imaginar que um entendimento mais amplo e frutífero entre ambos seja um elemento essencial para uma cooperação hemisférica em bases mais equitativas.
Em termos formais - alguns diriam "em linguagem burocrática" -, a relação Brasil-Estados Unidos é intensa, diversificada e apresenta uma agenda com assuntos estrategicamente importantes, para os dois países e para as relações internacionais em geral, como é o caso, entre outros, do tema da energia. Parece, todavia, faltar em ambos os lados o convencimento de que a parceria entre os dois países deve ser "para valer".
Alguns importantes políticos norte-americanos, como o ex-presidente Richard Nixon em 1971, fizeram declarações do tipo: "Para onde for o Brasil irá o resto do continente". Tais declarações foram, como era de esperar, mal recebidas na América hispânica. E até mesmo no Brasil, a despeito do ufanismo oficial, foram recebidas com uma certa desconfiança, inclusive pelas autoridades de então. Recorde-se que o governo militar tinha uma retórica antiesquerdista e anticomunista, o que, por si só, já serviria para alinhar inequivocamente o Brasil com os Estados Unidos em tempos de guerra fria.
Na verdade, contudo, a desconfiança mútua permeou com frequência as relações bilaterais. Os Estados Unidos reagiam com ambiguidade e, às vezes, com mal disfarçada hostilidade a iniciativas brasileiras destinadas a reforçar a cooperação hemisférica, como foi o caso da Operação Pan-Americana, lançada por Juscelino Kubitschek em 1958, que acabou substituída pela Aliança para o Progresso, fruto de uma ação unilateral dos Estados Unidos.
A ambiguidade em relação à iniciativa de Kubitschek transformava-se em hostilidade quando os temas comerciais vinham à baila. Quando o Brasil, juntamente com a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, buscava fortalecer a integração regional por meio do Mercado Comum do Sul (Mercosul), a então secretária de Estado Madeleine Albright criticou o empreendimento, dizendo que o Brasil deveria focalizar a sua atenção na Área de Livre Comércio das Américas (Alca), iniciativa norte-americana. (Albright foi posteriormente desmentida pelo presidente Bill Clinton, em entrevista à imprensa nos jardins do Palácio do Alvorada, mas as suas declarações davam uma boa medida da atitude de "indiferença benigna" que caracterizava as relações bilaterais e existia também no lado brasileiro.)
As relações entre os dois países ainda dão a impressão de que estão presas à mentalidade que predominou durante a guerra fria. Parece haver no Brasil uma percepção generalizada de que o establishment norte-americano de política externa não atribui a devida prioridade às relações com o Brasil. As atenções norte-americanas são frequentemente percebidas como uma reação a questões que irritam Washington, como certas manifestações localizadas de nacionalismo populista em alguns países da região.
Assimetrias de poder e de estágio de desenvolvimento à parte, não parece haver razões que impeçam os dois principais países do Hemisfério de buscar estabelecer uma relação estratégica, positiva, importante e que, quando necessário, seja também, para usar uma frase do ex-embaixador soviético em Washington Anatoly Dobrynin, "um compromisso frutífero de interesses".
Os dois países, além das características já mencionadas em matéria de tamanho territorial, demográfico e econômico, compartilham valores políticos e culturais essenciais. A sociedade brasileira, assim como a norte-americana, tem origem multicultural e multiétnica; é também um melting pot que, não obstante os problemas sociais que ainda enfrenta, tem uma mobilidade econômica e social raramente encontrada em outros países.
Do lado de Washington, é de esperar que a importância da parceria com o Brasil receba os devidos reconhecimento e prioridade. Parcerias não excluem eventuais discrepâncias em relação a certos assuntos. Na realidade, diferenças ocasionais de percepções constituem a essência da convivência entre duas nações democráticas, onde os valores básicos que predominam são comuns a ambas.
Do lado de Brasília, parece oportuno promover uma ampla reavaliação das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, exercício fundamental no mundo pós-guerra fria, globalizado e interdependente, e que assiste, entre maravilhado e apreensivo, à emergência de novos gigantes no cenário das grandes decisões internacionais.
O fim da guerra fria e o extraordinário aumento da velocidade do fenômeno conhecido como globalização trouxeram uma grande instabilidade às relações internacionais. Bastaria citar, à guisa de exemplo, que a internacionalização dos processos produtivos tornou o protecionismo, que foi uma ferramenta bem-sucedida da industrialização brasileira, um instrumento ineficaz e obsoleto de proteção dessa mesma indústria.
No mundo da razão, 2012 poderia ser o ponto de partida de uma nova fase, de uma nova parceria menos assimétrica, entre as duas mais populosas nações democráticas do mundo ocidental. O caminho poderá ser complexo e, às vezes, eivado de dificuldades, de lado a lado. O êxito da empreitada dependerá da capacidade de cada um dos lados avaliar os desafios e as oportunidades de um oportuno relançamento das relações bilaterais com uma visão estratégica de longo prazo e, sobretudo, sem os preconceitos do passado.
*Presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), foi embaixador do Brasil na China e no Japão
Em termos formais - alguns diriam "em linguagem burocrática" -, a relação Brasil-Estados Unidos é intensa, diversificada e apresenta uma agenda com assuntos estrategicamente importantes, para os dois países e para as relações internacionais em geral, como é o caso, entre outros, do tema da energia. Parece, todavia, faltar em ambos os lados o convencimento de que a parceria entre os dois países deve ser "para valer".
Alguns importantes políticos norte-americanos, como o ex-presidente Richard Nixon em 1971, fizeram declarações do tipo: "Para onde for o Brasil irá o resto do continente". Tais declarações foram, como era de esperar, mal recebidas na América hispânica. E até mesmo no Brasil, a despeito do ufanismo oficial, foram recebidas com uma certa desconfiança, inclusive pelas autoridades de então. Recorde-se que o governo militar tinha uma retórica antiesquerdista e anticomunista, o que, por si só, já serviria para alinhar inequivocamente o Brasil com os Estados Unidos em tempos de guerra fria.
Na verdade, contudo, a desconfiança mútua permeou com frequência as relações bilaterais. Os Estados Unidos reagiam com ambiguidade e, às vezes, com mal disfarçada hostilidade a iniciativas brasileiras destinadas a reforçar a cooperação hemisférica, como foi o caso da Operação Pan-Americana, lançada por Juscelino Kubitschek em 1958, que acabou substituída pela Aliança para o Progresso, fruto de uma ação unilateral dos Estados Unidos.
A ambiguidade em relação à iniciativa de Kubitschek transformava-se em hostilidade quando os temas comerciais vinham à baila. Quando o Brasil, juntamente com a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, buscava fortalecer a integração regional por meio do Mercado Comum do Sul (Mercosul), a então secretária de Estado Madeleine Albright criticou o empreendimento, dizendo que o Brasil deveria focalizar a sua atenção na Área de Livre Comércio das Américas (Alca), iniciativa norte-americana. (Albright foi posteriormente desmentida pelo presidente Bill Clinton, em entrevista à imprensa nos jardins do Palácio do Alvorada, mas as suas declarações davam uma boa medida da atitude de "indiferença benigna" que caracterizava as relações bilaterais e existia também no lado brasileiro.)
As relações entre os dois países ainda dão a impressão de que estão presas à mentalidade que predominou durante a guerra fria. Parece haver no Brasil uma percepção generalizada de que o establishment norte-americano de política externa não atribui a devida prioridade às relações com o Brasil. As atenções norte-americanas são frequentemente percebidas como uma reação a questões que irritam Washington, como certas manifestações localizadas de nacionalismo populista em alguns países da região.
Assimetrias de poder e de estágio de desenvolvimento à parte, não parece haver razões que impeçam os dois principais países do Hemisfério de buscar estabelecer uma relação estratégica, positiva, importante e que, quando necessário, seja também, para usar uma frase do ex-embaixador soviético em Washington Anatoly Dobrynin, "um compromisso frutífero de interesses".
Os dois países, além das características já mencionadas em matéria de tamanho territorial, demográfico e econômico, compartilham valores políticos e culturais essenciais. A sociedade brasileira, assim como a norte-americana, tem origem multicultural e multiétnica; é também um melting pot que, não obstante os problemas sociais que ainda enfrenta, tem uma mobilidade econômica e social raramente encontrada em outros países.
Do lado de Washington, é de esperar que a importância da parceria com o Brasil receba os devidos reconhecimento e prioridade. Parcerias não excluem eventuais discrepâncias em relação a certos assuntos. Na realidade, diferenças ocasionais de percepções constituem a essência da convivência entre duas nações democráticas, onde os valores básicos que predominam são comuns a ambas.
Do lado de Brasília, parece oportuno promover uma ampla reavaliação das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, exercício fundamental no mundo pós-guerra fria, globalizado e interdependente, e que assiste, entre maravilhado e apreensivo, à emergência de novos gigantes no cenário das grandes decisões internacionais.
O fim da guerra fria e o extraordinário aumento da velocidade do fenômeno conhecido como globalização trouxeram uma grande instabilidade às relações internacionais. Bastaria citar, à guisa de exemplo, que a internacionalização dos processos produtivos tornou o protecionismo, que foi uma ferramenta bem-sucedida da industrialização brasileira, um instrumento ineficaz e obsoleto de proteção dessa mesma indústria.
No mundo da razão, 2012 poderia ser o ponto de partida de uma nova fase, de uma nova parceria menos assimétrica, entre as duas mais populosas nações democráticas do mundo ocidental. O caminho poderá ser complexo e, às vezes, eivado de dificuldades, de lado a lado. O êxito da empreitada dependerá da capacidade de cada um dos lados avaliar os desafios e as oportunidades de um oportuno relançamento das relações bilaterais com uma visão estratégica de longo prazo e, sobretudo, sem os preconceitos do passado.
*Presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), foi embaixador do Brasil na China e no Japão
Fonte: Estadão/defesanet.com.br
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