DENIS LERRER ROSENFIELD
Professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Em 2008, em histórica sessão, teve lugar o julgamento do caso da Raposa Serra do Sol, tendo como grande novidade as diretrizes estabelecidas pelo então ministro Meneses de Direito. Trata-se de um julgamento que elaborou diretrizes que deveriam ser seguidas pelos diferentes órgãos e entidades do Estado brasileiro, obrigando-os, mesmo, a uma revisão dos processos em curso de identificação e demarcação de terras indígenas. Em decorrência, movimentos sociais e ONGs deveriam seguir em suas ações o que foi estipulado pela Suprema Corte.
Dentre essas diretrizes, cabe assinalar duas que merecem especial destaque: a que estabelece o fato antropológico de ocupação efetiva de indígenas quando da promulgação da Constituição de 1988 e a que proíbe a revisão de limites das demarcações de terras indígenas já realizadas, por óbvio segundo os critérios da época em que foram feitas.
No que diz respeito à primeira, passa a contar a ocupação efetiva de indígenas nas terras a serem identificadas e demarcadas, o que implica dizer que a consideração de terras tradicionais deve levar em conta a ocupação efetiva e não traços históricos como cemitérios, por exemplo.
No que diz respeito à segunda, estão proibidas as ampliações de terras indígenas. No momento em que uma terra foi considerada como indígena, os seus limites são também considerados como não indígenas, estabelecendo a segurança jurídica para ambas as partes. Explosões demográficas configuram um problema social que deveria ser equacionado em sua seara própria e não via violação dos direitos já consagrados.
No entanto, o que fez a Funai? Até hoje, passados três anos, não normatizou a decisão do Supremo. Isto mesmo! Um órgão do Estado segue em seus processos de identificação e demarcação como se o Supremo nada tivesse decidido. Não se pode alegar, evidentemente, falta de tempo! Ocorre uma burla à lei.
No que toca à ampliação de terras indígenas, esse órgão do Estado está produzindo o
argumento de que as terras indígenas já existentes não são propriamente ditas frutos de identificações e demarcações, por não obedecerem aos novos critérios estabelecidos pela própria Funai. Ou seja, ela continua a legislar por atos administrativos, não necessitando, reitero, seguir as orientações do STF.
Estamos na verdade diante de uma hermenêutica ideológica de identificações e demarcações de terras indígenas.
Observe-se que há 110 milhões de terras indígenas já demarcadas e homologadas no Brasil, algo em torno de 13,5% do território nacional, para uma população global, segundo diferentes estimativas, inclusive da própria Funai e de ONGs como o ISA (Instituto Socioambiental), entre 450 mil e 550 mil indígenas.
Enquanto a Funai não normatiza as decisões do Supremo, algo que já foi, inclusive, solicitado pela Advocacia Geral da União (AGU), os processos de identificação e demarcação, novos e em curso, seguem o seu próprio ritmo. Casos de ampliação de terras indígenas como em Barra Velha e de novas demarcações como em Cahy-Pequi, no Sul da Bahia, continuam em processo, atingindo direitos há décadas assegurados. No primeiro caso, atinge basicamente pequenos e médios empreendedores rurais e, no segundo caso, assentamentos da reforma agrária, sobretudo representados pela Fetraf/CUT.
Os conflitos só estão se exacerbando, em um flagrante desrespeito às orientações estabelecidas pelo Supremo. Assinale-se ainda, nesse caso do Sul da Bahia, que a própria Advocacia Geral da União possui um parecer postulando que as normas do Supremo devem ser seguidas, o que até hoje não foi feito.
Caso semelhante de ampliação ocorre no Sul de Mato Grosso do Sul, lugar emblemático de conflitos acirrados, que só estão se perpetuando, com evidentes prejuízos para os indígenas e os produtores rurais. Ninguém sai ganhando, salvo os que incentivam os conflitos. A região de Dourados tem aparecido como símbolo desses conflitos, sendo um caso basicamente social de explosão demográfica a ser equacionado mediante políticas públicas de moradia, educação, trabalho e saúde.
Processos novos de identificação, como nos municípios de Gentil, Marau, Mato Castelhano e Ciríaco, no Rio Grande do Sul, ou em oito municípios do estado de São Paulo, mostram, por sua vez, como tampouco é obedecida a determinação do Supremo de ocupação efetiva quando da Constituição de 1988. O argumento de que, nesses casos, trata-se de estudos preparatórios e de formação de grupos de trabalho é um simples véu para enganar incautos, porque, uma vez a máquina administrativoantropológica posta em funcionamento, o resultado já está determinado de antemão.
Os antropólogos dizem textualmente que a sua função não consiste em contrariar os interesses "indígenas", não trabalhando, salvo raras exceções, para os empreendedores rurais. Há inclusive um dito "código de ética" para disciplinar essas atividades. O "laudo", portanto, será sempre favorável aos indígenas, estando os atingidos por essas medidas em uma espécie de beco sem saída.
Na situação atual, os conflitos só tendem a se reproduzir, com as distintas partes em litígio buscando os seus direitos na Justiça. Logo, se essa é a situação, não há solução à vista, os processos judiciais se prolongando indefinidamente. Se há conflito de direitos entre os indígenas e os empreendedores rurais, a resolução dessa questão se daria através da compra de terras pelo governo, a preço de mercado, terra nua e benfeitorias, assegurando as distintas partes bem-estar e segurança jurídica.
Isto é perfeitamente possível, havendo legislação para isto. Basta vontade política.
Enquanto isso não ocorrer, pessoas morrerão e serão feridas em ambos os lados, ninguém ganhando com isto, salvo os que pretendem continuar uma guerra que tem tudo de ideológica e nada do bom-senso de um equacionamento técnico do problema. Portarias existentes deveriam ser suspensas ou revogadas enquanto a necessária normatização da decisão do STF não for feita. É o estado de direito que está em questão.
Fonte: O Globo
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