Na Grã-Bretanha, onde quase 1 milhão de soldados morreram, as imagens dos ataques com gás mostarda e das trincheiras são retratadas em poesias lidas até hoje nas escolas
POR WILLIAM BOY, DO THE NEW YORK TIMES*
Na França, moro perto de um vilarejo chamado Sadillac. Ele não passa de um punhado de casas, um velho castelo, uma igreja e um cemitério cercado por alguns sítios e vinhedos. O vilarejo provavelmente não mudou muito desde a Revolução Francesa; sua população está em torno de 100 pessoas. Ao lado do cemitério há um obelisco com o nome de cerca de 30 jovens de Sadillac que morreram na 1.ª Guerra, 1914-18. É quase impossível imaginar o efeito dessas baixas em quatro anos nessa minúscula comunidade. Todo ano, às 11 horas de 11 de novembro – a hora e o dia do armistício de 1918 -, os moradores reúnem-se para participar de uma curta cerimônia em torno do obelisco.
Em 2014, serão cem anos desde o início da 1.ª Guerra. No entanto, sua presença em romances, filmes e televisão nunca foi tão grande – em Downton Abbey na televisão, no filme Cavalo de Guerra de Steven Spielberg, na minissérie de Birdsongs de Sebastian Faulks e na adaptação de Parade’s End de Ford Madox Ford por Tom Stoppard. O último velho soldado ou marinheiro morreu e quase todas as testemunhas já se foram, mas a guerra ainda exerce uma influência tenaz na imaginação.
Para nós, britânicos, as memórias, imagens e histórias de 1914-18 parecem ter uma persistência e um poder que ofusca as da 2.ª Guerra. Sou um exemplo dessa necessidade de revisitar o conflito: meu novo romance será meu terceiro tendo a 1.ª Guerra como eixo. Quando escrevi e dirigi o filme A Trincheira, sobre um grupo de jovens soldados em 1916 aguardando o início da Batalha do Somme, fiquei obcecado com os detalhes corretos: cada divisa gasta de boné e cigarro fumado, cada refeição consumida. Era como seu eu quisesse a verossimilhança absoluta para oferecer uma experiência autêntica e o espectador ficasse em posição de dizer “então foi assim, foi por tudo isso que eles passaram, como eles viveram – e morreram”.
Creio que essa é a chave por trás da persistente obsessão com essa guerra. Para nossa sensibilidade moderna, desafia a credulidade o fato de que, durante mais de quatro anos, exércitos europeus enfrentaram-se numa linha de trincheiras de 800 quilômetros estendendo-se do litoral belga à fronteira da Suíça. A guerra foi travada também em outras arenas – Galícia, Itália, Bósforo, Mesopotâmia, África Oriental e Ocidental, em batalhas navais em muitos oceanos -, mas é a frente ocidental e a guerra de trincheiras que define a guerra na memória.
Foi uma guerra de desgaste mortífera em que milhões de soldados de ambos os lados chapinhavam na lama de uma terra de ninguém para encontrar a morte nas explosões fulminantes do fogo de metralhadora e artilharia. Ao fim de quatro anos e cerca de 9 milhões de soldados mortos, as duas forças adversárias estavam essencialmente no mesmo pé em que estavam quando começaram.
Poesia. Na França e na Alemanha, os traumas da 2.ª Guerra apagaram em certa medida as memórias da 1.ª. Na Grã-Bretanha, onde quase 1 milhão de soldados morreram, ainda são as imagens das trincheiras do frente ocidental que são mostradas e ressoam no Dia da Recordação. Uma das razões para isso é, paradoxalmente, a ressonância da poesia. Os poetas da 1.ª Guerra – Wilfred Owen, Siegfried Sassoon, Edmund Blunden, Isaac Rosenberg – são ensinados em quase todas as escolas britânicas.
Consigo me lembrar de um poema terrível de Wilfred Owen, Dulce et Decorum Est, sobre um ataque com gás mostarda, sendo lido em voz alta para nós em sala de aula quando eu tinha 10 ou 11 anos. Os poemas de guerra moldaram nossas primeiras percepções da 1.ª Guerra e eram prontamente reforçados pelas imagens familiares das trincheiras e as histórias de batalhas fúteis e custosas. Intensificando a arte poderosa estava a documentação visual, pois ela foi a primeira guerra amplamente filmada.
Por fim, havia as histórias familiares. Cem anos não é tanto tempo assim. Meu tio-avô Alexander Boyd foi ferido e condecorado na Batalha do Somme. Seu irmão, meu avô William Boyd, foi ferido um ano depois em Passchendaele, como a 3.ª Batalha de Ypres era conhecida. As lendas e peripécias familiares alimentaram meu interesse na guerra.
Há uma razão mais profunda, talvez, para a guerra continuar nos mobilizando. Ela foi um conflito entre exércitos do século 19 equipados com armamentos do século 20 – daí a carnificina sem precedente. Para colocá-lo num contexto americano: imaginem um oficial do Exército dos Estados Unidos – na faixa dos 50 anos, por exemplo – no front de Argonne em 1918. Como um jovem soldado ele poderia ter lutado, 30 anos antes, na última das guerras contra os índios na expansão para o oeste dos EUA no fim da década de 1880.
Agora, ele se depara com um mundo diferente. As táticas eram do século 19 – avançar sobre o inimigo. Mas o inimigo dispunha de armas de destruição em massa – o campo era dominado por tanques, metralhadoras, morteiro, aviões e gás venenoso. Cerca de 117 mil soldados americanos morreram nos 19 meses de participação dos EUA na 1.ª Guerra – mais de 2 vezes o número de baixas no Vietnã, 20 vezes mais que no Iraque e no Afeganistão. Nenhuma sociedade aceitaria hoje uma contagem de baixas tão horrenda.
No início da Batalha do Somme, em 1.º de julho de 1916, o Exército britânico sofreu 60 mil baixas entre mortos e feridos – em um dia. Foi possivelmente o pior massacre da história militar, de exército contra exército. Há um sentimento muito real de que o mundo moderno – o nosso mundo – nasceu entre 1914 e 1918. Alguma coisa mudou na sensibilidade humana. Os soldados não estariam dispostos a se engajar em tamanha carnificina. Perto do fim da 1.ª Guerra, a tolerância com as normas passadas já começara a acabar. Em 1917, boa parte do Exército francês se amotinou e se recusou a atacar. Eles defenderiam, mas não atacariam.
Os dias de bucha de canhão acabaram para sempre em consequência dessa guerra, o que é mais uma razão para artistas tentarem repensá-la constantemente. Para citar outro poema, MCMXIV, de Philip Larkin: “Essa mesma inocência, jamais”. Após a 1.ª Guerra, nada no mundo seria como antes.
*É ESCRITOR, ENTRE OUTRAS OBRAS, DO ROMANCE ‘WAITING FOR SUNRISE’, EM FASE DE PUBLICAÇÃO
Fonte: O Estadão
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